E O DIA COMEÇA ASSIM!
Porquê? A pergunta estilhaça a minha atenção, e torna-se difícil continuar a ouvir a ladainha na qual está incluído
o inevitável doente calmo e colaborante,
hemodinamicamente estável, apirético.
Mas não reajo, porque afinal de contas este também é o meu pecado. O ritual prossegue implacável e a mínima tentativa de boicotar
o sistema recebe como resposta um suspiro profundo e um “deixa-me continuar”.
È aceitável porque afinal de conta
são 8 horas da manhã e estamos na passagem de turno, quem sai quer ir descansar, (merecidamente) e quem entra está-se a preparar
mentalmente para a correria descomunal tipo “apaga fogos“ na qual se tornou a nossa vida de uns tempos a esta
parte.
Terminada a passagem de turno, há apenas
tempo para ingerir um cafézinho rápido e vamos lá começar a “despachar serviço”.
Primeiro a administração da terapêutica
e/ou confirmação da terapêutica que os doentes autónomos prepararam, seguem-se os inevitáveis banhos de higiene e conforto.
Muitas vezes torna-se difícil saber se estes constituem conforto para o doente, se para o enfermeiro, tal o ênfase e a ansiedade
com que abordamos o doente, recusando muitas vezes a admitir a hipótese de que ele não queira esse “cuidado“ que
lhe estamos a oferecer.
O relógio essa máquina implacável não para.
Meu Deus são 11 horas e ainda faltam
fazer os pensos.
Entretanto as interrupções foram muitas.
Atendeu-se telefonemas
de familiares para saber informações de doentes recentemente operados, (com todo o direito), telefonou-se para o médico para
o avisar de que um doente tem dores, outro reduziu o volume de urina, outro tem um hemodreno muito funcionante, este entretanto
aproveitou para saber algumas informações de outros doentes, preparou-se as pastas dos doentes que vão fazer exames complementares
de diagnóstico... Enfim!
Chega um médico, nova interrupção,
quer saber o porquê do doente não ter ainda começado a sessão hemodiálitica uma vez que o protocolo tinha sido feito no dia
anterior, são dadas explicações de que ainda não houve tempo ou de que ele é o primeiro a chegar o que não é por ele bem aceite
(diálise exige presença física do médico), seguindo cada um para o seu lado, amuados.
Feitos os pensos, hemodiálises iniciadas
é tempo de avaliar sinais vitais das 12 horas e administração de terapêutica.
E as revisões terapêuticas que ainda
não foram feitas!
Chegaram os cirurgiões! Bom vamos lá
retirar os drenos, iniciar clampagem dos drenos biliares.
E os pensos que já tinham sido feitos!
Como?!
Biópsia hepática agora e a seguir paracentese
evacuadora?
Mas é hora de almoço e o pessoal está
reduzido a metade, porque não avisou antes para que o material tivesse sido preparado antecipadamente?
Então o doente vai ter alta e só somos
avisados agora!?! E o ensino à família como vai ser?
Hora das visitas, informações dadas
a correr esperando fervorosamente que as perguntas sejam em menor número possível para poder ter tempo para fazer os balanços
hídricos, refazer um ou outro penso, terminar sessões hemodiáliticas e escrever as ocorrências.
Finalmente são 4 horas, “está
tudo feito”.
Repete-se a cena inicial, no rosto
de quem sai espelha-se o cansaço, algumas vezes o desânimo e a estranha sensação de que “algo ficou por fazer”.
Á TARDE
Estamos na era dos
computadores.
As duas primeiras horas do turno são
passadas a fazer as alterações terapêuticas (novamente), e, a fazer as folhas com essas alterações no computador.
O quê? Mudaram as folhas do word para
o excell?!
Aprender tudo novamente vai-me fazer
perder mais tempo.
Telefone, é do Hospital de S. José.
Há dador, começa a roda viva.
Telefonema
para o médico, técnico da anatomia patológica (leitura da biópsia), hepatologista de serviço, serviço de sangue, cirurgiões,
anestesista...
São 19 horas e eu ainda só tive tempo
para cumprimentar os doentes.
Numa corrida dirijo-me aos doentes
pelos quais sou responsável para ver os sinais vitais, não há tempo para mais nada, o resto dos “cuidados“ terão
que esperar ou então serão feitos por algum colega.
Novamente para o telefone. O transplante
está marcado para as 21 horas.
Há que avisar as equipas. Chamar enfermeiros,
auxiliares, anestesista, transportes, telefonar para um ou outro cirurgião (a pedido), pedir ceias de reforço, verificar soros
no frigorífico, testar ventilador, etc.
São 20 horas, eis que chega o doente.
Muito rapidamente há que mostrar-lhe
o quarto explicar a ele e á família as regras das visitas que não há tempo para muito mais. Só nos resta 1 hora até o doente
seguir para o bloco. Há que fazer colheitas de sangue para análises
laboratoriais,
encaminhamento para fazer Rx, E.C.G., banho de preparação da pele, tricotomia, colocação de placa de eléctrodo neutro, meias
de contenção, administração de terapêutica.
No
rosto do doente espelha-se uma mistura de emoções, por um lado receio (a rondar o medo) da cirurgia, por outro a alegria pelo
transplante sonhado quase que diariamente.
O descortinar dessas emoções fica no
entanto para depois porque no pouco tempo disponível há ainda que fazer a colheita de dados.
E o doente segue para o bloco.
Porquê? Novamente a mesma pergunta
paira insistentemente na nossa mente, que mal estar é esse se está tudo feito?
Porquê o desconforto e o sentimento
de que nos esquecemos de alguma coisa?
EIS QUE CHEGA A NOITE
Após a realização
das tarefas habituais (avaliação de sinais vitais, administração de terapêutica, fazer um ou outro penso que se encontra repassado,
posicionamentos, etc.), finalmente alguma disponibilidade, mas é tarde porque os doentes dormem... afinal a noite foi feita
para dormir!
Resta-nos “debicar” a ceia
e comentar o inevitável... falta de tempo, excesso de trabalho, e falta de pessoal; a tríade invencível que persegue os enfermeiros
onde quer que estejam.
A noite é boa conselheira. É um período
do dia em que reflectimos a azafama do dia a dia nos consciencializamos que nem sempre podemos deixar que as nossas acções
sejam conduzidas pelas circunstâncias, torna-se inevitável assumir o papel de actor principal que nos pertence por direito
no filme da nossa vida.
Diariamente
nos confrontamos com situações que nos causam insatisfação e que gostaríamos de modificar. No entanto certifica-se que na
maioria das vezes continuamos em frente por uma questão de comodismo, ficando á espera que outros resolvam os nossos problemas.
Atribuímos
aos órgãos de chefia a responsabilidade da resolução de problemas relacionados com a nossa prática e esquecemos com certeza
que também temos a responsabilidade se não com a instituição, mas para com os utentes dos nossos cuidados de garantir uma
prestação no sentido da maior qualidade, estabelecendo verdadeira relação de ajuda.
Acredito
que os enfermeiros são os únicos responsáveis pelos cuidados que prestam e que os clientes dos seus cuidados são o eco para
a comunidade da qualidade desta prestação, contribuindo assim para a imagem social que projectamos para a sociedade em geral.